quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Prefácio cultura corporal por Zé Beto

Prefácio cultura corporal por Zé Beto
Olhei a pirambeira da Brigadeiro Luis Antônio, em São Paulo, e vi aquela procissão de supostos atletas caminhando como se estivessem numa procissão.
Era o incentivo que faltava para encerrar ali minha corrida. Não iria agüentar aqueles últimos quilômetros. Ok, era minha estréia na Corrida de São Silvestre, mas até ali eu já tinha feito até pacto com o Tinhoso para arrancar forças lá de dentro para continuar movimentando o corpo em direção a que mesmo? Então ouvi de novo a voz. "Vamos, vamos, que está perto. Não desista!" Saía da boca de um menino que ali fazia o papel de meu anjo da guarda e que também corria com a tranqüilidade de quem nasceu para amar o corpo e, principalmente, valorizar a alma. Quando venci a subida do calvário, virei à direita e vi lá na frente uma enorme faixa identificando a "chegada", flutuei ao lado do menino e cruzamos a faixa como se estivéssemos adentrando o paraíso. A medalha de participação guardo até hoje. Nunca mais participei da prova, mas naquele dia eu conheci mais um pouco o garoto que publica este livro, o mesmo que, dois meses antes, quando lhe propus realizar um sonho de criança, enquanto puxava ferro em sua saudosa academia Kine, topou na hora, da forma mais simples, direta e incentivadora: "Vamos!"

O Carlos Mosquera "vai" desde que nasceu. Uma semana antes de escrever este texto, tentei falar com ele. Não deu. Estava no Amapá dando aula num curso de pós-graduação. Há pouco tempo fui me despedir do azuretado que partia para a Espanha dos seus ancestrais para defender tese em fisiologia do exercício. Pegou mais este canudo com louvor. No tempo em que eu vestia quimono e engatinhava no Karatê, cruzava com ele dando aula de judô. Aí descobri que era especialista no ensino do esporte para deficientes visuais.

No final do ano se veste de Papai Noel e vai levar presentes para o asilo São Vicente de Paula. Um dia levou um fogão a lenha novinho que doei com o maior orgulho. Madrugada dessa vi o bicho resfolegando no frio na rua que lambe a traseira do Palácio Iguaçu. Preparava-se para mais um triatlo ou maratona, sei lá. Mas preparava-se. O Carlos sempre está-se preparando, porque sempre soube que a vida é assim. A jornada é que importa. E quando segurava não sei quantos quilos no supino, e quase estourava a veias do pescoço ao levantar o peso, gritava "não tem depressão que resista a isso" e só hoje eu sei a verdade contida nestas palavras. Carlos Mosquera é um ser humano que tem a alma destrancada. Ele flui e quem está à sua frente vê o rio de águas mansas, mas sempre indo em frente, e vai junto, porque não há o que temer.

Ele é sinal positivo e isso impregna tudo o que faz. Podem notar nos artigos deste livro. Por mais técnicos que sejam, eles resumem uma lição que pode ser encontrada, por exemplo, nas letras de Jorge Benjor: o normal é que é belo e há jeito para tudo nessa nossa vida abençoada. No retorno daquela Corrida de São Silvestre, em meados dos anos 90, aterrissamos em Curitiba com céu limpo e noite estrelada. O guri que estava ao meu lado sorriu quando as rodas do avião tocou o solo do aeroporto do Bacacheri. Na bagagem, além da medalha, ele trazia um filme cravado de imagens feitas durante a prova e que depois serviriam para ilustrar um texto que fiz sobre a aventura nas páginas do Jornal do Estado, este mesmo onde ele estrearia anos mais tarde como colunista. Nos despedimos logo depois e ele sumiu na noite como se aquilo fosse a coisa mais comum do mundo. Para ele era, porque sempre conseguiu cumprir aquilo que se mete a fazer. Para mim foi um 31 de dezembro mágico, porque consegui realizar um sonho, principalmente porque havia alguém me empurrando com um "vamos, vamos". Depois soubemos que na nossa frente tinham chegado pouco mais de seis mil corredores. Que maravilhosa vitória. Eu parei de correr. O Carlos Mosquera não. Porque ele é a prova de que é possível fazer sempre e flutuar sobre os espinhos, porque vale a pena a vida.



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